A proteção das “cobaias humanas” e o desenvolvimento científico: a nova lei brasileira

A proteção das “cobaias humanas” e o desenvolvimento científico: a nova lei brasileira

Por Ana Claudia Brandão

Recentemente, foi sancionada no Brasil a Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024, que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, apelidada de “Lei das cobaias”. Qual a importância dessa lei para a sociedade? Você já parou para pensar como surgem os novos medicamentos e tratamentos? Como eles são testados? Em que momento eles podem ser colocados no mercado? Pois é…. O tema pode parecer distante, mas não é: ele faz parte das nossas vidas e da nossa saúde. 

É sabido que as pesquisas com seres humanos são fundamentais para o avanço da ciência e da medicina. Elas permitem o desenvolvimento de novos tratamentos, medicamentos e intervenções que podem melhorar a qualidade de vida das pessoas e até cura-las. Sem a realização de estudos clínicos e experimentais em humanos, seria impossível validar a eficácia e a segurança de novas terapias.

Essas pesquisas têm sido responsáveis por descobertas revolucionárias na medicina, como o desenvolvimento de vacinas que erradicaram doenças, a criação de novos medicamentos para tratar condições crônicas e a compreensão aprofundada de patologias complexas. Além disso, as pesquisas ajudam a identificar fatores de risco, promover a prevenção de doenças e melhorar os cuidados com a saúde pública.

A evolução científica também depende da diversidade nas pesquisas. Estudos que incluem uma ampla gama de participantes permitem que os resultados sejam mais generalizáveis e aplicáveis a diferentes populações. Isso é fundamental para garantir que os benefícios das inovações científicas sejam amplamente distribuídos e que todos os grupos populacionais possam se beneficiar dos avanços médicos.

A pandemia de COVID-19 destacou a importância e a urgência das pesquisas com seres humanos. Diante da crise global de saúde, foi necessário acelerar os processos de desenvolvimento e aprovação de vacinas para conter a disseminação do vírus. O mundo assistiu a uma mobilização científica sem precedentes, onde pesquisadores, empresas farmacêuticas e governos colaboraram para desenvolver vacinas em tempo recorde.

Normalmente, o desenvolvimento de vacinas pode levar anos, passando por várias fases de pesquisa e testes clínicos rigorosos. No entanto, a emergência sanitária exigiu uma abordagem mais rápida e eficiente. A experiência com a COVID-19 ressaltou a importância de estruturas regulatórias ágeis e adaptáveis, capazes de proteger os direitos dos participantes enquanto permitem avanços científicos rápidos em momentos críticos.

No entanto, garantir que essas pesquisas sejam conduzidas de maneira ética e responsável é essencial para proteger a dignidade e a saúde dos participantes, além de promover o avanço seguro e eficaz da ciência.

A regulamentação das pesquisas com seres humanos tem uma longa história que remonta ao período pós-Segunda Guerra Mundial, quando as atrocidades cometidas em nome da ciência durante o regime nazista vieram à tona. Esses eventos levaram ao surgimento do Código de Nuremberg em 1947, o primeiro conjunto de diretrizes éticas que enfatizou a importância do consentimento voluntário e informado dos participantes.

Posteriormente, a Declaração de Helsinque, adotada pela Associação Médica Mundial em 1964, consolidou princípios éticos fundamentais para a pesquisa biomédica. A declaração, que passou por várias revisões ao longo dos anos, estabelece que a pesquisa deve respeitar a autonomia dos participantes, minimizar riscos e garantir benefícios.

Nos Estados Unidos, o Relatório Belmont, publicado em 1979, definiu três princípios básicos: respeito pelas pessoas, beneficência e justiça. Esses princípios orientam a regulamentação de pesquisas e influenciaram a criação do sistema de Revisão Institucional (IRB), responsável por revisar e monitorar as pesquisas com seres humanos.

No Brasil, a primeira regulamentação específica surgiu em 1996, com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Essa resolução estabeleceu diretrizes e normas para pesquisas envolvendo seres humanos, destacando a importância dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs). Desde então, houve várias atualizações e aprimoramentos nas normas, refletindo a evolução das práticas e a incorporação de princípios éticos internacionais.

A Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024, em que pesem as críticas recebidas e sugestões de veto, (quarenta entidades científicas, da saúde e de trabalhadores do setor farmacêutico, encabeçadas pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO divulgaram uma nota indicando o veto de oito pontos do projeto, dos quais dois foram acolhidos) representa um avanço na regulamentação das pesquisas científicas envolvendo seres humanos no Brasil. Este marco legal estabelece um conjunto abrangente de garantias para os participantes de pesquisas, visando proteger sua dignidade, saúde e direitos.

A lei estabelece princípios claros que orientam todas as pesquisas com seres humanos, assegurando que os interesses dos participantes prevaleçam sobre quaisquer outros. Entre os princípios destacados, estão o respeito aos direitos humanos, que assegura que os direitos, dignidade, segurança e bem-estar dos participantes sejam protegidos em todas as fases da pesquisa, e o consentimento livre e esclarecido, que deve ser obtido de forma livre e esclarecida, garantindo que os participantes sejam plenamente informados sobre os objetivos, métodos, riscos e benefícios da pesquisa.

A autonomia, através da obtenção do consentimento livre e esclarecido é um dos pilares da proteção dos participantes de pesquisas. A lei define que os participantes devem ser informados sobre todos os aspectos relevantes da pesquisa, incluindo seus objetivos, métodos, duração, potenciais riscos e benefícios. As informações devem ser apresentadas em linguagem clara e acessível, facilitando a compreensão de todos os aspectos da pesquisa. Além disso, os participantes têm o direito de retirar seu consentimento a qualquer momento, sem sofrer qualquer tipo de penalidade ou prejuízo.

A proteção da privacidade e a confidencialidade dos dados pessoais dos participantes são garantidas pela lei. Esses dados devem ser tratados com o mais alto grau de confidencialidade, de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Sempre que possível, os dados dos participantes devem ser anonimizados para proteger sua identidade.

A supervisão ética e científica das pesquisas é, igualmente, essencial para garantir a proteção dos participantes. Todos os projetos de pesquisa devem ser aprovados por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), que avaliará a conformidade ética e científica do estudo. As pesquisas devem ser monitoradas continuamente para identificar e mitigar quaisquer riscos à saúde e segurança dos participantes.

A lei define procedimentos claros para lidar com eventos adversos que possam ocorrer durante a pesquisa. Em caso de eventos adversos graves, os participantes têm direito a assistência médica imediata e devem ser indenizados por quaisquer danos sofridos como resultado de sua participação na pesquisa.

A legislação também presta atenção especial à proteção de grupos vulneráveis, como crianças, idosos, pessoas com deficiência e populações indígenas. Vale ressaltar que um dos trechos vetado determinava que o Ministério Público deveria ser comunicado sobre a participação de indígenas em pesquisas. Os ministérios dos Povos Indígenas e da Educação argumentaram que a regra “fere o princípio da isonomia e aponta para possível situação de tutela estatal em relação aos povos indígenas, condição superada pela legislação”. Assim, além do consentimento dos responsáveis legais, o assentimento do próprio participante é necessário, respeitando sua capacidade de compreensão. São implementadas medidas adicionais para garantir a proteção adequada desses grupos, considerando suas necessidades específicas.

Ponto importante é a previsão de garantias para a continuidade do tratamento dos participantes após o término dos ensaios clínicos. Outro trecho vetado estabelecia que os participantes de pesquisas deveriam receber medicamentos experimentais por até 5 anos depois da conclusão da pesquisa clínica, o que, sem dúvida, seria prejudicial aos direitos do participante. Com o veto, fica mantida a atual regra que garante o fornecimento gratuito e por tempo indeterminado de métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que tenham demonstração de eficácia após o fim da pesquisa, independentemente da disponibilidade comercial do produto. O patrocinador da pesquisa é quem deve garantir o acesso. 

Após o término do ensaio clínico, uma avaliação individual deve ser realizada para determinar a necessidade de continuar o tratamento experimental para cada participante. Embora a garantia do tratamento já existisse, não era incomum casos chegarem ao Judiciário como o julgado pelo TRF 4º Região, em que se reconheceu o direito dos pacientes que participam de pesquisa farmacológica a seguir recebendo os medicamentos mesmo após a conclusão dos estudos. No caso, o paciente portador de síndrome de Hunter recebeu o medicamento Idursulfase, durante um período de testes de quatro anos. A empresa recorreu ao tribunal, alegando não haver mais obrigatoriedade contratual após a realização do estudo, com a aprovação do remédio pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e sua disponibilização no mercado. No julgamento, entendeu-se que o caso envolvia um medicamento novo e já previamente fornecido pelo laboratório ao paciente, responsável pela continuidade do fornecimento já que “Tendo o cidadão, pela angústia de seu estado, aceito a submissão, ainda assim deve ser tratado com dignidade, não podendo ser transformado apenas em cobaia de laboratório. À vida humana cumpre lhe estender, real e não aparentemente, a inafastável dignidade (Laboratório deve seguir fornecendo medicamento a paciente participante de pesquisa farmacológica (trf4.jus.br)). Certamente, deixar a critério do patrocinador da pesquisa a garantia da continuidade do tratamento ensejará a propositura de ações como a acima relatada, embora a lei tenha o mérito de estabelecer responsabilidades para o mesmo. 

Na questão transparência e responsabilidade, importante previsão é de obrigação de divulgação de resultados  das pesquisas, independentemente de serem positivos ou negativos, para contribuir com o avanço do conhecimento científico; divulgação de conflitos de interesse, posto que os pesquisadores e instituições devem divulgar quaisquer conflitos de interesse, garantindo a integridade das pesquisas e, por fim, o dever de fiscalização pela CONEP, que  tem a responsabilidade de credenciar, acompanhar e fiscalizar os CEPs, assegurando a conformidade com as normas éticas e regulatórias. Isso ajuda a prevenir abusos e a garantir que a pesquisa contribua de maneira positiva para o avanço do conhecimento e para o bem-estar da sociedade.

A regulamentação das pesquisas científicas é vital para proteger a dignidade e a saúde dos participantes, promovendo ao mesmo tempo o avanço seguro e ético da ciência. Embora a Lei nº 14.874/2024 não seja perfeita e enfrente desafios e críticas, ela representa um passo no estabelecimento de um marco regulatório que reforça as proteções e responsabilidades dos envolvidos nas pesquisas. 

Ao garantir que as pesquisas sejam conduzidas com respeito, transparência e responsabilidade, a legislação não apenas protege os participantes, mas também fortalece a confiança pública na ciência e nos seus benefícios para a sociedade. 

Foto: Divulgação redes sociais

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